terça-feira, 15 de novembro de 2011

...o dia em que quase morri...


…final de Verão de 93, as minhas férias ainda não tinham terminado. Eu estava bem disposto e no convívio com amigos na Serra da Estrela e não fazia intenção de acabar as férias tão cedo.
Os meus pais nesse dia teimaram que esse era o dia de regressar a Lisboa. Eu fiz birra e não estava nada disposto a ir. Deixei a mala por fazer, disse que ia depois de autocarro ou comboio mas…os meus pais não me deram tréguas e lá tive de ir, relutante mas fui na mesma.
Não falei com eles a viagem toda, liguei o meu “Walkman” de K7 da Sony, phones nos ouvidos a ouvir “Iron Maiden”, “Metallica”, “Guns N’Roses”, enfim o mais “Hard” que a revolta pode gerar…

O meu pai tinha uma carrinha de 9 lugares, pois tinha comércio e necessitava para carregar mercadorias. Assim aproveitou e levou mais familiares, era ao todo 6 pessoas no carro, três lugares à frente (eu ia no meio) e mais três atrás (uma prima com as suas duas filhas).

Foi ai que tudo aconteceu…o tempo parou e o mundo começou a funcionar em câmara lenta.
Ao principio pensei que tinha sido o “Walkman” que tivesse a ficar sem bateria ou a K7 a encravar, mas a sensação era mesmo essa, de que tinham reduzido as rotações do disco e tudo estava a parar.
Lembro-me dos gritos de pânico que pareciam roncos roucos, misturados com o chiar dos pneus, o balanço incontrolável provocado pela tempestade lá fora…
O carro tinha sido abalroado pela esquerda, empurrado para a direita embatendo na berma e num pequeno terreno mas, quando pensávamos que tudo tinha ficado por ai, o terror instalou-se e o que foi milésimos de segundos, para mim foram minutos…horas…dias…
Atravessamos quatro faixas de rodagem, vi o olhar de pânico misturado com horror do condutor da outra faixa, quando este se encolheu todo para receber o nosso “abraço” metálico de sangue misturado com os fluidos, sangue, óleos, sangue, agua, sangue, vidro, sangue…e começamos a descer.
Descemos por uma ribanceira cheia de arbustos, árvores, natureza, beleza como se fosse o paraíso, mas lá em baixo eu consegui vislumbrar a linha férrea por onde passava o comboio…

Levantei-me, estava calmo e tranquilo, vi uma amalgama de ferro retorcido, misturado com vidros partidos, névoa de fumo pairava no local. Não sei por quanto tempo fiquei a observar essa cena dantesca de corpos inertes dentro do veiculo que deitava fumo.

Ouvi a minha mãe a gritar o meu nome, apercebi-me que ainda estava dentro do carro no lugar do meio. Estavam todos em cima de mim, conseguia sentir a pressão do peso das bagagens e das pessoas.
Eu olhava para todo o lado, mas estava tudo enevoado como se estivesse coberto por uma cortina espessa e escura…Fui puxado e senti que sai por uma das janelas.
Sem conseguir ver nada, sentia-me ser puxado por várias mãos, pele que tocava com diferentes temperaturas e rugosidades…tinham feito um cordão humano para puxar os feridos.
Senti uma voz feminina que me perguntava o que sentia, só conseguia dizer que não via nada…entretanto comecei a sentir um sabor agridoce na boca, um sabor férreo de sangue….entrei em pânico, pensei que estava a explodir por dentro, com hemorragias internas.
Procurei um apoio com as mãos e senti a chapa irregular do que me pareceu um carro dos bombeiros e, desatei aos murros ao carro.
Ouvi gritar e agarrarem-me a dizer que estava a entrar em estado de choque…fui atirado para dentro de uma ambulância, juntamente com os outros familiares, menos o meu pai. Perguntava onde estava o meu pai, toda a gente a tentar me acalmar, mas ninguém me dizia nada…e eu a gritar “onde está o meu pai !!!”. O desespero foi tomando parte do meu ser, deixei de ouvir, de ver, de sentir…tinha os sentidos trocados. Via com as mãos, ouvia com os olhos, sentia com os ouvidos…
Então na mistura dos gritos das sirenes, comecei a ouvir os gemidos e choro do resto dos familiares…não sentia dores. Fui tocando um a um para os sentir vivos e, para me sentir vivo.

Chegamos ao hospital, agarraram em mim e tiraram-me de dentro da ambulância. Ouvi, esperançoso, outra voz feminina que me auxiliou, dizer “o seu pai está na outra ambulância” e levou-me até ele. Senti, finalmente, o calor das mãos do meu pai e a sua voz, calma, que me perguntou “está tudo bem?”, agora está…

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