quarta-feira, 16 de novembro de 2011

...o dia em que perdi alguém...

...foi quando senti o seu perfume que tive a certeza que a ia perder nesse dia!

"Sabes, tive um sonho estranhíssimo, esta noite, até acordei a rir!!!", disse a minha esposa, nessa tarde na hora de visita.
"Vê lá, estavas tu e o enfermeiro 'Vicente', sabes ? aquele que está a estagiar, de óculos e novinho?!", sim o enfermeiro 'Vicente', até eu, depois de tantos meses no hospital, sabia fazer melhor os tratamentos do que ele.
Era mesmo novinho, ainda sem experiência, mas é para isso que servem os estágios, ainda por cima nestas unidades de cuidados intensivos.
"Estava ele muito atrapalhado, em volta de mim! Colocava aparelhos e tirava! Mexia-me e, olhava para mim com cara de parvo! Eu perguntava-lhe o que estava a fazer! Ele não me respondia e continua naquela atrapalhação!", não me admirava nada disso, realmente ele era um bocado trapalhão, ainda bem que já tinha ido estagiar para outro hospital.
Tinha pouca confiança nele. Sempre que fazia os tratamentos à minha mulher, eu passava o tempo todo a dar dicas.
Sim, é que eu tive um curso intensivo!!  Desde de fazer o curativo das feridas, provocadas por 14 horas de operação. Tratando a pele ferida e dilacerada, onde outrora residia um farto peito de pele macia e morna, inebriando de desejo todo o meu ser com o seu perfumado sabor que a minha boca envolvia. Tratando a pele ressequida, onde antes existia um abdómen, forte e quente, que se enchia de ar a cada vibração, agora, sem vida, é somente um emaranhado de pele sintética e ossos feitos de uma espécie de cimento e um diafragma feito de uma rede...14 horas de operação e de espera, com uma equipe de 15 médicos, enfermeiros, especialistas, carpinteiros, estucadores...

"Pois foi e, tu olhavas para ele e dizias o que ele devia fazer!!! Hilariante, tu sabias mais do que ele que estudou medicina...mas eu falava contigo para não te enervares com ele, mas não me respondias. Ainda bem que ele já cá não está, acho que foi para o Santa Maria. A enfermeira 'Maria' andava sempre atrás dele a corrigir as coisas dele!", e as 'coisas' dos médicos?! Quem as corrige?! Quem corrige 2 anos de tratamento para 'algo' que não era?!!! Quem corrige a falta de capacidade de visão para ler uma radiografia que dizia tudo?!!

"Eu sentia-me bem, e vocês a falar como se eu nem estivesse ali!! Não sentia dores, nem sentia o tubo no pulmão, respirava muito melhor!! Eu a dizer isso e vocês nada, só às voltas e voltas...", e voltas com as garrafas do oxigénio lá em casa, com um cobertor por baixo para não riscar o chão e 7 meses sem dormir a ver se o oxigénio tinha acabado, se estavas a respirar, se o tubo no pulmão não tinha entupido, se estavas com febre, se estava na hora dos remédios, se a pequenina com 3 anos chamava pelo pai, pois a mãe não podia ir e ela sabia disso "A mamã tem um doi doi papá, sabias? Ela não me pode pegar ao colo, mas tu podes, não podes papá?!!", o que é que se diz a uma criança que vê o pai a tirar liquido do pulmão da mãe com uma seringa, uma mãe que a pegava ao colo todo o dia, que a levava a passear e, que agora passa o dia na cama ou no sofá, sem falar nem com a filha, a olhar o vazio, "Claro que posso, anda cá Amor!!!"  ainda hoje com 10 anos eu faço questão de a pegar ao colo...

"Vocês pareciam baratas tontas às voltas! Depois tu paraste e ficaste a olhar para mim, mesmo nos meus olhos, parecia que tu entravas dentro deles!!! Foi mesmo real, quando acordei desatei a rir ao lembrar-me das vossas caras tontas!!!"

...duas semanas depois, estava eu no trabalho e recebo um telefonema da enfermeira 'Maria',
"É o marido da Maria José?!",
o meu sangue gelou nas veias e o meu coração começou a bombear pedaços de gelo envidraçado que me cortavam por dentro, isso já tinha acontecido à 7 meses atrás, quando o primeiro médico a operou e me chamou sozinho para uma sala...e ali tirou de mim todo o chão dos meus pés, toda a minha força, todo o meu Amor, eu sabia já à 7 meses e nada disse, via a esperança no rosto das pessoas, dos pais dela...mas nada disse, até eu próprio tive a pretensão egoísta de sentir esperança, mas nada disse...e nessa noite chorei, como nunca o tinha feito, um vomito agonizante de dor que veio do fundo mais obscuro do meu ser, que nunca apaziguou a dor durante esses 7 meses...chorei sem saber o que viria a seguir, o que me reservava nesses 7 meses de dor, esperança, Amor...e não mais chorei até esse dia...
"Sim!! sou eu! Aconteceu alguma coisa?!!!"...sim tinha acontecido

Quando cheguei ao hospital, já lá estavam os pais dela e a irmã.
Ela respirava pesadamente, com o auxílio do oxigénio, num sono profundo de olhos abertos como se nos estivesse a ver.
Tinha entrado em coma nessa noite e, pediram a todos os familiares para estarem com ela, para ela sentir-se acompanhada.
Sentei-me na cama junto a ela, junto ao seu rosto...foi quando senti o seu perfume que tive a certeza que a ia perder nesse dia!

E chorei, chorei porque eu sabia...agarrei-me  a ela para a segurar, para a não deixar partir, o egoísmo apoderou-se de mim, achei que tinha o direito de a ter, de que maneira fosse...

"Acalma-te, não fiques assim!!", disseram os pais dela, "Olha que ela está a ouvir tudo!! Ela vai ficar ansiosa e vai demorar mais a sair do coma!!!"...a sair do coma, mas que triste ilusão. Para quê que ela queria sair do coma?!! Para se sujeitar a mais uma série de tratamentos??!! Para ver a filha e não a poder abraçar, nem pegar ao colo?!!! Não, basta de sofrimento, BASTA!!!!

A noite aproximou-se e, cansados os pais dela foram até à cantina do hospital. Fiquei sozinho com ela. Por momentos ia jurar que ela sorriu.
"Boa noite!!" disse uma voz atrás de mim. Quando me virei era o enfermeiro 'Vicente', "Venho fazer o tratamento! Se quiser pode ir descansar até lá fora", "Obrigado, estou bem aqui!" disse.

Ele começou a pegar em tubos para a aspirar, e seringas e toalhas, de um lado para o outro, às voltas como se não soubesse o que fazia. Eu a dizer como se costumava fazer, a dizer que se tinha de rodar a torneirinha para não entrar micróbios.
Ele colocou um tubo numa narina e começou a aspirá-la, depois a outra. Limpava aqui e ali.
Quando acabou e estava a arrumar tudo, comecei a sentir a respiração dela estranha.
"Olhe que ela não está a conseguir respirar!!!", "Ela tem as veias todas a dilatarem!!!" como quando rimos à gargalhada e nem conseguimos respirar...

Eu aproximei-me do rosto dela e senti, senti o seu último folgo, senti mesmo nesse momento, nesse preciso momento, os seus olhos a olharem os meus e a agradecerem com uma ternura inimaginável, todo o Amor, Carinho, Dedicação toda a entrega...e vi, vi as suas pupilas dilatarem e escurecerem...

Deixei-a partir..."Adeus meu Amor!"...

1 comentário: